Skyfall: o Bond do novo século

(Nov 2015, publicado no semanário O País)      

Este novo 007, tão justificadamente aguardado, traz-nos um James Bond crepuscular, mais velho, mais denso, adaptado a um mundo que já não é aquele onde se tornou uma figura icónica e em que as surpresas tecnológicas que maravilharam os espectadores se banalizaram. Um Bond diferente mas que vale bem a pena conhecer

Bond, o comandante James Bond, o agente secreto criado por Ian Fleming que se tornou a figura icónica do que foi porventura o primeiro grande franchising da história do cinema, tenta resistir, dignamente ao espírito dos novos tempos que já não são, decididamente, aqueles em que alcançou a fama. Bond está mais velho, assume-se como um cinquentão, a sua misteriosa chefe, 'M' (Judy Dench, que enche o ecrã), é substituída no final. O agente do MI6 ganha uma nova secretária (que pouco tem a ver com a Moneypenny de outros tempos e o seu devoto e criativo cientista, 'Q', que para ele inventou as engenhocas mais surpreendentes da história do cinema é agora um jovem (Bem Whishaw) superdotado que se limita a entregar-lhe uma pistola que só funciona na sua mão e uma espécie de localizador GPS para poder ser sinalizado onde quer que se encontre. Os diálogos previnem, a propósito do novo 'Q', que 'a idade não é garantia de eficiência' e que 'a juventude não é sinónimo de inovação'. Eloquente, tão eloquente que ambos os artefactos não têm qualquer papel relevante no filme, como que a demonstrar que, em matéria de artefactos e gadgets, a indústria já inventou tanto, tanto, que deixou de valer a pena tentar surpresas num domínio tão explorado. Enquanto género que parodiava as cenas mais inverosímeis e os objectos letais mais inimagináveis, a marca 007 tem hoje muito pouco a acrescentar aos prodígios digitalizados que Hollywood quase que fabrica em série e em grandes volumes anuais. Por isso, quase que os dispensa.

Bond não se confronta apenas com o inevitável 'dejá vu' das suas deliciosas armas de sedução (proezas improváveis, brinquedos surpreendentes e mulheres bonitas e esculturais), confronta-se acima de tudo com a poeira do tempo. O agente torna-se, cada vez mais, um herói fora do seu tempo e a única forma de ultrapassar a situação é fazer que não haja um único Bond, mas um Bond para cada época. A guerra fria desapareceu e os malfeitores isolados, ambiciosos ou psicopatas ou as duas coisas ao mesmo tempo, tornaram-se os inimigos viáveis. A última vaga de desafios às capacidades de Bond e do MI6 (os serviços secretos ingleses) é o terrorismo internacional. Quem o vai enfrentar é um Bond envelhecido e um tanto decadente, que se embebeda com cerveja num bar de praia e que reaparece, após uma morte simulada) visivelmente fora de forma (Daniel Craig incarna o papel soberanamente), à semelhança, aliás, do Reino Unido, que perdeu muito do esplendor cosmopolita dos tempos em que era ou se pensava uma grande potência. Tanto Bond como a Inglaterra vivem esta nova era com uma espécie de resignação crepuscular, mas também com uma atitude muito mais densa, mais tensa, mais humana e até mais irónica que aquela que dominava nas grandes produções que celebrizaram 007. O tempo já não é de arrogância nem está para futilidades.

Este novo Bond não dispensa, no entanto, as sequências trepidantes. Muitas delas ficaram nos anais cinematográficos como a sua marca singular. Em homenagem às espantosas aventuras passadas do superagente de S. Majestade, Skyfall oferece-nos três sequências fabulosas: a portentosa perseguição inicial, de moto, pelos telhados de Istambul, em que as motas fazem acrobacias no fio da navalha, a luta corpo-a-corpo num edifício de vidro na feérica Xangai e uma alucinante sequência de Metro, tecnicamente perfeito na mistura entre filmagens de ângulos impossíveis e a digitalização e a miniaturização operada em estúdio. Poderíamos acrescentar a última sequência, passada na casa da Escócia, com um quê de western deslocado nas terras cinzentas da Escócia, o lado mais 'escuro' do filme. Aliás Skyfall é o nome da quinta escocesa e descreve exemplarmente todo o filme: um céu de chumbo abateu-se sobre a espionagem clássica.

Sam Mendes (vencedor de um Óscar com American Beauty) já tinha, em Casino Royale, mostrado a sua competência para pegar em Bond. Fá-lo em Skyfall novamente com grande mestria. Uma narrativa fluída sobre um argumento que poderia ser melhor mas que, apesar de tudo, consegue explicitar as traições, intrigas, revelações, que dão intensidade à estória. A banda sonora está ao nível a que a série nos habituou. A canção de Adele é interessante. Os actores seguram impecavelmente a narrativa. De Craig já falámos, é soberbo, com a barba por fazer onde se notam as brancas e com um ar que tem mais a ver com a personagem inaugural de Sean Connery, alguém que 'vem de baixo' e não se pretende confundir com um nobre inglês coaptado para a profissão. A francesa Bérénice Marlohe é uma perfeita 'bond girl' e Naomi Harris arma bastante bem a sua sensualidade e não será, nas sequelas, se as houver, apenas uma substituta da outra Jane Moneypenny. A personagem de Javier Bardem foi a que menos nos entusiasmou. Trata-se de um actor de primeira grandeza, e isso foi reconhecido ao atribuírem-lhe o Óscar pelo seu desempenho em Este País Não é Para Velhos. No entanto, o seu papel não 'encaixa' completamente com o de Bond.

Este último Bond, que nos revela que os ajustes de contas já não passam por inimigos externos, fazem-se dentro do próprio MI6 e vasculham o seu passado, constitui uma grande homenagem à franquia. E apresenta-nos um outro Bond, o do século XXI e de todas as paranoias que o assaltam. 

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