
O Prodígio
(Jan 2014, publicado no semanário O País)
Fischer foi campeão mundial de xadrez, destronando a hegemonia soviética num duelo que fez parar o mundo da altura e pôs os 'media' em efervescência. Um dos primeiros confrontos globais, protagonizado por uma personalidade excepcional, que agora chega ao cinema pela mão do realizador Edward Zwick
Como passar para o cinema um dos duelos globais pioneiros da era moderna quando este assenta num jogo de xadrez? Ou seja, como compatibilizar o tempo propriamente cinematográfico e com o que o tempo fundo e alongado do xadrez, como não tornar o filme tão especulativo que aborrecesse o espectador?
Era a questão que se colocava, à partida a Edward Zwick ('Tempo de Glória', 'Lendas de Paixão ', 'O Último Samurai'). Se soçobrasse na sua solução, e o risco era tremendo, comprometia tudo o mais que envolveu o frente a frente entre Bobby Fisher e Boris Spassky, algum que resumia o espírito de uma época, por isso alimentava manchetes. Acrescia a personalidade de Fischer. Sinceramente não me recordo dos detalhes que a imprensa dos meados dos anos de 1970 dava neste aspecto, mas lembro-me bem das paixões que o jogo decisivo entre Fisher e Spassky disputado na gélida Islândia incendiou mundo fora.
De um lado, um jovem excêntrico que desafiava as conveniências, tinha rasgos geniais e punha em causa a hegemonia xadrezista da então União Soviética, cuja escola sempre produzira campeões do jogo em que reis, rainhas, torres, bispos, cavalos e peões se tentam derrubar. Era um tema de conversa, de curiosidade, gerador de emoções. E o chamado 'Ocidente', e sobretudo os Estados Unidos, jogava no caso os seus valores e a honra da sua 'supremacia'.
O jogo de xadrez entre os dois campeões, um russo, outro norte-americano, tornou-se um combate ideológico que se não conseguiu comover toda a gente, pelo menos não deixou ninguém indiferente.
Fischer foi um prodígio, inventou o improvável no xadrez, fintou a lógica e acrescentou-lhe criatividade, foi uma personalidade genial e muito complexa. Foi tanto o 'herói' da vitória sobre Spassky, uma vitória conseguida de forma brilhante numa atmosfera tensa e atribulada, como o 'anti-herói' que foi preso no Japão. O que o salvou foi a cidadania que lhe foi dada pela Islândia, país onde regressou depois de constituir o palco em que conquistou a celebridade ao vencer Spassky na final do campeonato do mundo de xadrez e onde acabou por morrer em 2008.
O pós-crédito do filme dá um apontamento sobre os altos e baixos (mais baixos que altos) da vida de Fischer após o duelo, como que a esclarecer que conhece as facetas de Fischer, mas que se quis centrar no jogo que opôs os dois xadrezistas e no ambiente que o rodeou.
No 'duelo' do protagonismo ganha obviamente Fischer, o argumento coloca-se sobretudo do seu ponto de vista. Todo o resto chega a resumir-se a encenação. Tobey Maguire, que é igualmente um dos produtores do filme, confirma-se, na sua personagem de Fischer, como um dos grandes actores contemporâneos. Tem um desempenho notável.
Assente num argumento de Steven Knight (escritor de 'Promessas Perigosas', de David Cronenberg, e 'Estranhos de Passagem', de Stephen Frears, e realizador de 'Locke' e 'Redenção'), Edward Zwick narra, com desenvoltura, excelentes cenários e fotografia, um episódio que concentrou as atenções do mundo, mostrando, ao mesmo tempo, como esse mesmo mundo se via, e que teve como protagonista um xadrezista genial. Edward Zwick não retrata a vida de Fischer, procura contar o modo como a sua personalidade extraordinária dominou, por inteiro, um confronto internacional. Um filme que se vê muito bem.