
Um filme predestinado
(Ago 2015, publicado no semanário O País)
Um filme que nos põe a viajar no tempo e a tentar
decifrar, em cada nova surpresa, onde vai dar o fio narrativo, algum que se
torna cada vez mais difícil à medida que o destino se revela como uma teia
bizarra e paradoxal. E, por falar em surpresa, esta obra dos irmãos Spiering é
do melhor que o ano cinematográfico nos trouxe
Este filme, de curto orçamento, dos irmãos australianos Michael e Peter Spierig é uma fabulosa materialização do que comumente se costuma designar por quebra-cabeças. Os volte-faces na narrativa são uma constante, quando o espectador julga que conseguiu agarrar um fio da meada tudo vai novamente por água abaixo. Ninguém sai do filme com a cabeça no mesmo estado em que lá entrou. Uns ficarão rendidos. Outros detestarão. A maior parte, se calhar, fica a saborear a perplexidade que 'O Predestinado' suscita.
Uma obra surpreendente, seguramente uma das grandes surpresas do ano cinematográfico e a demonstração de que não é preciso dispor de grandes somas para produzir um filme excepcional, a todos os títulos...
Colocando-se no campo da ficção científica, 'O Predestinado' explora, para lá do paroxismo, os paradoxos suscitáveis pelas viagens no tempo, entretecendo uma teia de causas e efeitos que desarmam completamente o espectador. Os irmãos Spierig conseguem, com base num argumento brilhante, inspirado no conto de Robert Anson Heinlein de 1959 intitulado 'All You Zombies', tão criativo como inextrincável, uma narrativa brilhante, visualmente sedutora, com uma excelente banda sonora, cheia de 'pulsars' (também da responsabilidade de um dos irmãos argumentistas e realizadores) apesar da reduzida amplitude do orçamento disponível.
A ideia de ficção, não só científica mas ficção em sentido lato, é levada ao extremo. Aliás, Robert Anson Heinlein é um guru da escrita de ficção científica e referência literária do conceito de paradoxo da predestinação, que leva ao limite.
Ficção é ficção. Não tem limites. Vai muito além do provável. Já vivemos num mundo em que a própria realidade nos atira, a todo o instante, para a vertigem do improvável, pelo que só faltava que a ficção se contivesse nas fronteiras do plausível.
'O Predestinado' conta-nos a estória de agente que recorre à máquina do tempo - figurada pela caixa de um violino dotada dos dígitos que correm nas rodas giratórias de um normal cadeado - para evitar catástrofes (do tipo do naufrágio do Titanic ou do ataque às Torres Gémeas). O que coloca na girândola de uma realidade circular em que os saltos temporais trazem sempre novidades totalmente inesperadas e absolutamente bizarras.
O agente temporal é Ethan Hawke (um actor que comprova mais uma vez as suas qualidades, já patenteadas em filmes como 'Dia de Treino', 'Antes da Meia-Noite' e 'O Vampiro', que tem de impedir que, em 1975, um psicopata que sempre conseguiu escapar-se-lhe ('Fizzle Bomber') consiga eliminar 11 mil pessoas na cidade de Nova Iorque. Disfarça-se de 'barman' para convencer um ser hermafrodita, John/Jane (a revelação Sarah Snook, com um desempenho de tirar o chapéu), a viajar com ele no tempo para deter o assassino, transportando-se para 1963, ano em que John, ainda como Jane, teria conhecido o bombista. A partir daí dão vários saltos no tempo, encetando uma espiral de acontecimentos que se enrodilham num destino que se mostra tão bizarro quanto inexorável e que, malévola e deliciosamente, transgride todos os limites sociais e morais.
'O Predestinado' lembra muito de bom que se faz em cinema, desde 'Twilight Zone' a John Carpenter', passando por Ridley Scott e por filmes como 'Matrix', 'A Origem' e 'Interstelar'. O destino é um mistério cheio de paradoxos. Um filme completamente louco. Genialmente louco.