O Lobo de Wall Street

(Jan 2014, publicado no semanário O País)     

Uma realização 'à Martin Scorsese', um argumento brilhante de Terrence Winter, uma interpretação impecável de Leonardo DiCaprio. O Lobo de Wall Street cumpre uma espiral alucinante e angustiante, ao ritmo frenético a que hoje circula o dinheiro

Martin Scorsese exibe em O Lobo de Wall Street uma notável agilidade. É um dos grandes mestres do cinema da nossa época e demonstra cabalmente que não está esgotado, ainda que os seus temas prediletos - sobretudo o retrato da mafia - tenham sido devorados por um tempo que corre célere, tal como O Lobo de Wall Street percorre as ruas de Nova Iorque e subúrbios à velocidade de um cometa. Por outro lado, Scorsese encontrou, em definitivo, o sucessor do seu actor favorito: Roberto de Niro. O realizador acredita cada vez mais nas capacidade de Leonardo Di Caprio e dá-lhe em O Lobo de Wall Street um papel ingrato, amoral, sem remorso ou contrição. E Di Caprio seguirá naturalmente daqui para uma das mais fortes candidaturas ao Óscar para o melhor actor do ano.

O Lobo de Wall Street cumpre uma espiral alucinante e angustiante, ao ritmo frenético a que hoje circula o dinheiro. Tudo se passa a uma velocidade estonteante - dinheiro, cocaína e sexo são consumidos vorazmente e com uma ferocidade desvairada.

O filme baseia-se na história verídica de um ambicioso e habilidoso corretor de Wall Street (Jordan Belfort, incarnado por DiCaprio) que, na década de 1990, construiu um verdadeiro império a partir do nada, seguindo um estratagema audacioso que lhe permitiu, com base na manipulação de acções consideradas 'lixo', conseguir ampliar a sua actividade a diferentes tipos de manobras especulativas, sem hesitar em pisar terrenos ilegais. O argumento, excelente, é da autoria de Terrence Winter, responsável pelas séries Os Sopranos e Boardwalk Empire. Scorsese coloca o argumento de Winter no ecrã com grande mestria e até se dá ao luxo de o estender por três horas de filme, um desafio ao espectador que, no nosso caso, foi vencido sem dificuldade.

Belfort foi um 'senhor do universo' e Scorsese mostra bem de que massa são feitos os senhores do universo dos nossos dias. Amorais, sem escrúpulos, vendendo dinheiro como se vende outra coisa qualquer, incluindo droga. Belfort tem o azar do seu primeiro dia de trabalho numa empresa prestigiada de Wall Street coincidir com o crash de 2008. Mas antes da derrogada ainda pôde aprender com um dos mais conhecidos corretores, durante um almoço inenarrável, a essência do negócio. Quem ganha não é quem investe, pois o dinheiro, como a droga ou qualquer vício que se preze, tem uma força aditiva e há sempre maneira de convencer o cliente a reinvestir as mais-valias. Neste mundo virtual quem mete ao bolso dinheiro a sério é o corretor, o intermediário, que vai cobrando as comissões das operações.

Apesar do crash e do afundamento da Bolsa, Belfort retoma as suas funções de corretor num estranhíssimo negócio que, aparentemente, nem está sujeito a qualquer regulamentação, um mercado de terciaríssima categoria, onde são comercializadas acções de elevadíssimo risco a preços miseráveis mas que dão ao corretor 50% de comissão. Estabelece-se então por conta própria, junta os amigos do passado, todos eles meros e duvidosos vendedores ou mesmo puros marginais sem qualquer conhecimento do mundo financeiro. Mas, afinal de contas, o que interessa é vender, impingir e ganhar. Funda uma empresa própria, a Stratton Oakmont, e atinge o estrelato, vivendo numa espiral alucinante de drunfos, cocaína, sexo e luxo. Neste mundo a linguagem não é cuidada, fala-se, do princípio ao fim no calão mais ordinário.

Há uma piada no guião, quando Belfort e os seus amigos começam a ser perseguidos pelo FBI, a casas respeitáveis que controlam Wall Street e o poder financeiro global e que, fazendo substancialmente o mesmo que este punhado de oportunistas relativamente marginais, não são, no entanto, importunadas pelas autoridades. Concedamos que figuras como as de Belfort se situam como que na 'periferia' do poder financeiro. E que também é verdade que este tipo de personagens e este tipo de sucesso não é uma singularidade dos nossos dias. Só que, e este é um pormenor terrível, nunca tiveram acesso a tanto poder como ao que obtêm hoje. Aliás, Belfort até se teria safo se tivesse aceite um acordo minimalista - ou seja, mais um branqueamento - com a entidade supervisora da Bolsa norte-americana. Mas optou por não desistir do seu estilo de vida assente na ganância desmedida. Teima na sua versão de 'América, terra das oportunidades'. A única opção 'ética' do filme. E perde. O que torna tudo ainda mais divertido.

É já larga, e de muito boa qualidade (estamos a lembrar-nos de Wall Street, de Oliver Stone, de Blue Jasmine de Woody Allen, de O Dia Antes do Fim de J.C. Chandor e da Fogueira das Vaidades de Tom Wolf, adaptada por Brian de Palma) a filmografia mais recente sobre o poder financeiro e os seus bastidores. Scorsese acrescenta-lhe um filme brilhante, uma narrativa sem preocupações moralistas, contada 'por dentro', pelos olhos de quem protagonizou a estória verídica que a suporta, o que enobrece o trabalho de DiCaprio. Não há imperfeições. O argumento, que nos dá como que uma 'comédia de costumes que acaba mal', recheada de trechos e frases inesquecíveis, é precioso, o trabalho de DiCaprio impecável, a realização ao nível do melhor que se pode fazer em cinema (é notável como mesmo nas cenas mais tumultuosas Scorsese não larga a câmara fixa). É o melhor Martin Scorsese? E o que é que isso interessa? É um filme excepcional.

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