
O Grande Gatsby
(Mai 2013, publicado no semanário O País)
Exuberante, luxuriante e feérico, visualmente arrebatador, timbrado pelo som do hip-hop de Jay-Z e dos acordes mais celebrizados de George Gershwin, esta transposição para o cinema do clássico de F. Scott Fitzgerald é um luxo
O Grande Gatsby (The Great Gatsby), o romance do escritor F. Scott Fitzgerald, teve um acolhimento modesto quando foi publicado, em 1925, tornando-se, após a Segunda Guerra Mundial (1945), um clássico da literatura americana. Não é possível adivinhar se a recriação cinematográfica que o realizador australiano Baz Luhrmann (Moulin Rouge, Romeu e Julieta, Austrália) faz do livro de Fitzgerald decalcará o destino desta. Se, não tendo sido propriamente recebido de forma entusiástica - a apresentação em Cannes valeu uma chuva de críticas pouco lisonjeiras - virá a ser, com o passar dos anos, consagrado como uma obra superior. É, no entanto, impossível não lhe reconhecer méritos. E de vulto.
Na sua versão de O Grande Gatsby Luhrmann é pródigo na exibição da luxúria, por vezes passa todos os limites na criação de devaneios visuais, roçando mesmo o gosto duvidoso de ambientes publicitários (como na cena das cortinas esvoaçando), denota um atrevimento absoluto nas opções que fez em matéria de 'actualização' da obra de Fitzgerald, como é o caso da banda sonora (admirável para muitos, entre as quais nos incluímos) que ousa misturar Gershwin e hip-hop (a música da rua da actualidade) do rapper Jay-Z, é exuberante na cenografia enchendo o olho do espectador, o que, para muitos, não passará de um exercício excessivo e, a culminar todo este empolgamento, leva a obra de Fitzgerald até à terceira dimensão cinematográfica - entre nós não foi exibida a cópia em 3D mas em 2D.
Sendo também um drama amoroso, o romance de Fitzgerald não é fundamentalmente uma estória de amor mas um olhar desencantado sobre a sociedade norte-americana, em particular a sociedade nova-iorquina, dos loucos anos vinte (1920). E isso Luhrmann traduz muitíssimo bem. Fá-lo ao colocar no eixo do filme a decepcionada narrativa de Nick Carraway, o jovem vizinho do misterioso milionário Gatsby, atraído pela estonteante roda da sorte da bolsa de Nova Iorque e a atmosfera quase fantástica de uma cidade enlouquecida e embriagada. Fá-lo ao envolver-nos numa girândola orgíaca que decorre a um ritmo estonteante na primeira parte do filme. Fá-lo ao descarnar o sonho americano, mostrando-nos, com singular destreza, os conflitos sociais que o foram movendo: a oposição entre 'novos ricos', detentores de fortunas com origem mais ou menos obscura, e as velhas classes dominantes de 'sangue azul', exibindo os excluídos desse mítico sonho, os que habitam a poeira suja do carvão que escurece a terra sulcada por reluzentes automóveis, os novos brinquedos dos afortunados, ou ainda a ascenção dos afro-americanos e a sua cultura. As tensões sociais estão sempre presentes no feérico espectáculo de álcool e luxúria que Luhrmann montou. O drama de Gastby foi convencer-se que o dinheiro recria o passado, de que a vida se pode reescrever, que ela nos proporciona uma segunda oportunidade. Vive, na sua obsessão amorosa, uma ilusão trágica: a de que a paixão é um sentimento que paira acima da ética de cada estrato social, ou seja, de que os pobres a vivem da mesma maneira que os ricos.
O Grande Gatsby de Luhrmann é um sonho de grandeza, teatral, operático. Puro pretensiosismo do realizador australiano? Conseguiu finalmente adaptar ao cinema o clássico de Fitzgerald fazendo jus à sua essência? Será que o deslumbramento a que quase no obriga nos impede de formar sobre isso um juízo definitivo? Talvez. Mas o seu sonho extasia-nos ao longo das mais de duas horas de exibição do filme, quanto a isso não temos dúvidas. Como não deixam quaisquer dúvidas a desenvoltura narrativa, os cenários, o guarda-roupa, a banda sonora ousada, a fotografia brilhante. E, claro está, a interpretação, num elenco também ele de luxo, encabeçado por Leonardo De Caprio (no papel de Gastsby), que conta com a excelente companhia de Tobey Maguire, Carey Mulligan e ainda a preciosa participação de Amitabh Bachchan.