UCRÂNIA: NAS RUAS EUROPEIAS HAVERÁ CADA VEZ MENOS PAZ

09-03-2023

Quem tenha paciência para coleccionar e somar os lucros declarados pela grandes companhias constata facilmente que a crise económica (agora é mais bonito chamar-lhe 'disrupção') está a produzir uma colossal transferência de rendimento nas sociedades que se inserem no tal 'ocidente alargado'. Os pobres e as classes médias perdem para os mais ricos. E perdem muito.

As manifestações em reacção à perda de rendimento e direitos são já visíveis nas sociedades ocidentais e se quase todas elas vêm de trás foi agora ainda mais comprometida a solução do problema e surgirão certamente novas e mais intensas reacções, algumas radicais, à degradação das condições de vida. Os problemas convertidos em estruturais desde o início do milénio, com o esboroar das elevadas taxas de crescimento conseguidas nas décadas anteriores, a que a antiga "sociedade da abundância" já não consegue responder, agravar-se-ão. Adivinham-se terramotos políticos.

As guerras, as manifestações mais degradantes da condição humana, muitas vezes não se percebe bem porque começam e como rapidamente a sua violência escala o horror. Haverá, a dar-lhes sentido, grandes tendências na história. A primeira grande guerra europeia pôs fim a impérios em declínio, como o austro-húngaro ou o império dos Habsburg, deu cabo doutros, trouxe a revolução socialista na Rússia e o início da grande influência norte-americana na Europa. Mudou drasticamente o mapa político do continente. E, no entanto, teve a origem um episódio patético.

O conflito ucraniano, à partida um conflito regional, volveu-se num conflito global em que há a particularidade de os grandes actores (com excepção da Federação Russa) não pisarem directamente o teatro de operações. Mudou o mundo. A fragmentação da globalização em blocos geopolíticos está em curso. É um movimento imparável, ainda que contrário ao ADN da globalização, a qual, por natureza, não põe o pé no travão, acelera sempre.

Há, neste cenário, quem ande a propagandear uma estratégia excepcionalmente estúpida e ignorante, a qual passa por impôr, pela guerra, o modelo da "democracia liberal" por todo o planeta. Nem vale a pena perder tempo com esta monstruosidade mental, embora ela tenha, o que é muito perigoso, arautos de primeiro plano e esmagadora cobertura televisiva

Grande parte dos 1% de privilegiados que açabarcam mais de 50% da riqueza mundial não é oriunda de "democracias liberais", antes extraíram a sua opulência da economia liberal (e global) de mercado. Há infinitos exemplos que mostram ser uma mistificação grosseira opor "democracias liberais" a outras muito menos "liberais" ou "autocráticas" num cenário de "bons" e "maus" em que os "cowboys" têm primazia moral bastante para exterminar os índios. Tornou-se este enredo um filme de propaganda omnipresente, insuportável e interminável.

A Europa é a grande perdedora de tudo isto. Fica, inevitavelmente a viver com energia mais cara, pois a ainda há pouco bradada transição energética não chegará a tempo de salvar a competitividade europeia, se é que vai chegar. A confusão é grande. A Alemanha importa mais carvão russo (carvão!), os países do norte de África, incluindo a Argélia, um país produtor, recebem grandes quantidades de petróleo russo, que não é destinado, aparentemente, às suas refinarias, pois estas mantêm o mesmo nível de actividade. Grandes petrolíferas norte-americanas, com lucros brutalmente aumentados, levam a tribunal a Comissão Europeia por tentar taxar esses resultados, considerados excessivos. Estados Unidos e Noruega drenam para a Europa todo o gás natural que podem a preços elevados. A indústria de armamento norte-americana rejubila com contratos de dezenas de milhares de milhões de euros.

A Europa abdica dos seus desígnios climáticos (o que se vê no desespero da jovem sueca que foi ungida em santa da causa), está acossada por uma guerra muito provavelmente perdida no plano militar, corroída pelo efeito perverso das sanções económicas que impôs à Federação Russa, abalada por custos de energia crescentes (sobretudo o gás natural) a partir deste ano, e obrigada a uma nova corrida ao armamento com impacto orçamental desastroso sobre as funções sociais do Estado.

O empobrecimento real da população tomará o clamor da rua, e a difícil relação com a China, o principal parceiro comercial da União Europeia, no novo panorama geopolítico criado pela guerra na Ucrânia, constitui um quebra-cabeças. A inflação continuará a minar o poder de compra, obrigando o Banco Central Europeu a subir o preço do dinheiro, os juros, sufocando ainda mais os orçamentos familiares e retirando aos estados-membros mais endividados facilidades na gestão da sua dívida. Estes, em que se inclui Portugal, apesar do sacrifício de serviços públicos e rendimentos para fazer descer a respectiva dívida pública passarão um péssimo bocado. A acrescentar a tudo isto Bruxelas já sentenciou que os diferentes estados têm de pôr termo aos apoios extraordinários às populações mais atingidas pela inflação insuflada pelo conflito que se desenrola a leste...

A Europa prepara-se para assistir não à ansiada recuperação das crises financeiras e sanitária que enfrentou, mas à sua derrocada.

Ignora-se quando se encetarão negociações que travem a continuação da guerra a leste. É, contudo, mais que certo que nas ruas das cidades europeias, haverá cada vez menos paz.

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