Lagarde, um alvo a abater?

Quando o Banco Central Europeu (BCE) interviu na última crise económica internacional, desencadeada pela especulação financeira sobre o imobiliário norte-americano, entrou numa parceria para disciplinar o défice público dos países incumpridores das regras do euro, como Portugal. Na altura, não se falava sequer em inflação.
O BCE foi um dos pilares da famosa 'troika', que impôs, enquanto credora, medidas espartanas à economia portuguesa, em particular aos gastos públicos. O chamado "pacote de austeridade" era a resposta da direcção europeia às dificuldades dos países endividados em se financiar e cumprir a meta do défice, uma das condições (ainda que, na gíria económica, "instrumental) da circulação da moeda única.
Após a conclusão da intervenção externa (o 'programa de ajustamento'), os "pigs" (os países mais 'atrasados' do euro), retomaram o seu lugar (em Portugal, e depois de um governo do PSD chefiado por Passos Coelho ter executado o 'programa de ajustamento, seguiu-se uma governação socialista virada para o défice e apoiada, no parlamento, pela ala esquerda do regime (Partido Comunista e Bloco de Esquerda). Um apoio estranho, já que as "reposições" de rendimentos eram fatais e que algumas alterações introduzidas no tempo de Passos Coelho e exigidas pela "troika" eram benéficas para a economia (muito espartilhada), embora idelogicamente diabolizadas pela tradicional esquerda do regime.
Mas, insistimos, no meio disto tudo a inflação não assustava ninguém. E agora assusta. E muito. Em 2008 e anos seguintes 'cortaram-se' administrativamente os rendimentos da classe média, classe baixa e pensionistas. Agora a subtracção de rendimentos sai directamente do bolso no supermercado. Uma situação temporária? A acreditar nas versões de gente próxima do BCE, como, em Portugal, são os casos de Constâncio ou Centeno, já terá sido atingido um pico da subida dos preços. Mas porquê? Porque se acredita que as taxas de juro não sobem mais nos Estados Unidos, porque se estima um fim próximo para o conflito na Ucrânia, ou porque se espera que o abalo produzido no mercado energético se esfume de um dia para o outro e tudo volte ao normal?
Haverá razões, expectativas, por detrás da afirmação de que a inflação já atingiu o máximo, como garante a gente ligada ao BCE. Mas colam mal à realidade.
O BCE não se depara apenas com uma conjuntura muito complexa, confronta-se com um problema existencial. A sua principal missão é domar a inflação, colocando-a no patamar de 2%, fundamento da moeda única. Ora, não se vê que os instrumentos clássicos de que dispõe lhe permitam demonstrar que controla a situação. A verdade é que a taxa de criação de moeda, nas suas variadas formas, é menor que a taxa de crescimento do produto, o que invalida praticamente o recurso à subidas das taxas de juro de referência para fazer descer a inflação (como recomenda a teoria monetarista).
Se o preço do dinheiro subir e os preços não baixarem os líderes europeus converterão a senhora Lagarde numa espécie de inimigo público. Aos eleitorados causticados pela crise económica ou já enfurecidos dirão que o Banco Central Europeu falhou. No meio da vozearia ninguém se importará muito com o "pormenor", ninguém ligará muito ao facto de ser uma confissão do fracasso do projecto do euro.
Ou conseguirá a Europa, o Conselho Europeu, que dita hoje a política dos países membros, outra solução, e outra cara, para a política monetária?
É pouco provável. As diferenças dos níveis de inflação entre os diferentes países da União Europeia é já abissal e insuspeitável até há bem pouco tempo. É o impacto da crise energética a fazer-se sentir assimetricamente.
E a crise energética, ou a crise nos mercados energéticos, não se vai resolver rapidamente. O presidente da Vitoil, a maior trading global de produtos de energia, alertou para que o próximo inverno será ainda mais duro para a Europa, que tem os seus stocks preenchidos a 90%, muito graças ainda ao gás russo.
Não há qualquer indicador que leve a acreditar que o custo do gás natural na Europa não se vá manter elevado nos próximos anos, implicando um forte custo social devido ao impacto sobre o rendimento das populações, habituadas ao modo de viver europeu, um dos mais privilegiados do mundo.
Não há qualquer indício de que a Europa consiga recuperar a curto prazo. Aliás, a primazia do chamado ocidente tende a ser fragilizada em todos os domínios. O predomínio do dólar e, mais recentemente, do euro, nas transacções internacionais, um instrumento de dominação essencial, tendem a ser questionados. O euro perde para o dólar e a moeda norte-americana vai ser cada vez mais ameaçada como moeda de reserva internacional. Sem poder utilizar o sistema SWIFT, as trocas em moeda nacional entre a Rússia e parceiros aumentam, impondo as respectivas moedas, uma estratégia seguida meticulosamente pela China ao longo das últimas décadas.
O designado Ocidente, a pátria das actuais "democracias liberais", não junta muito mais de mil milhões de pessoas entre os mais de sete mil milhões de humanos que habitam o planeta. Vivem nuns 35 dos 160 países do mundo. Um ocidente com dramas internos seríssimos (políticos, económicos, sociais e culturais) que se agravarão com uma ainda maior depreciação dos rendimentos das classes médias e da classe baixa.
Não vale a pena fazer da senhora Lagarde um alvo a abater. Não tem culpa nenhuma que tenham inventado tudo isto.