Há gente a mais

A questão populacional é sempre exemplarmente excluída das grandes inquietações contemporâneas: o ambiente, o clima, a quebra brutal da biodiversidade, os efeitos da digitalização. Malthus, um pensador do séc. XVIII, ganhou má fama entre a intelectualidade mainstream.
Malthus chamou a atenção para o facto do crescimentos populacional ser muito mais rápido que o aumento dos recursos disponíveis, designadamente os agrícolas. A população cresceria a um ritmo geométrico (1,2,4,8,16...), ao passo que os recursos agrícolas evoluiriam a um ritmo aritmético (1,2,3,4...). Recursos agrícolas a que hoje acrescentaríamos os energéticos.
As crise ambiental, climática e de quebra da biodiversidade estão, na verdade, ligadas ao crescimento da população, que exige que se explorem cada vez mais recursos para suprir as sua necessidades. São os países mais pobres que apresentam as taxas de natalidade mais elevadas e muitos desses países beneficiaram relativamente com a globalização, passando as suas populações (ou parte delas) a ter acesso a mais bens de consumo - cuja produção traz desiquilíbrios climáticos e ambientais, quer se trate da libertação de dióxido de carbono pela utilização de combustíveis fósseis quer devido à "industrialização" da agricultura e da pecuária.
Em 1804, nos tempos que precederam a revolução industrial, a Terra era habitada por 1 000 milhões de seres humanos. Logo a seguir à revolução industrial a população duplicou, atingindo 2 000 milhões de pessoas. Em 1960 ainda era de 3 000 milhões. Este ano (2022) deverá aproximar-se dos 8 000 milhões. Quatro vezes mais. E até 2 100 poderá chegar aos 11 mil milhões de almas. Todos os anos são acrescentadas 70 milhões de pessoas à população mundial.
A corrente neo-malthusiana defende o recurso aos métodos contracepcionais como forma de controlar o aumento populacional.
Curiosamente, em Portugal, o neo-malthusianismo já foi popular, no movimento operário e nas classes do sul rural. Entre 1920 e 1924 a taxa de natalidade registou uma quebra de 18%. Publicaram-se revistas como a "Paz e Liberdade", que se definia como anti-militarista, anti-patriota, sindicalista revolucionária e neo-malthusiana".* A divulgação do neo-malthusianismo em Portugal ficou a dever muito a um físico, conhecido pelas suas simpatias anarquistas, Ângelo Vaz. Hoje a corrente é ignorada pela cultura dominante, amarrada ao alarme da quebra de natalidade e suposta falta de mão-de-obra, sobretudo pouco qualificada, pois a mais qualificada tenta a emigração.
CRISE AMBIENTAL
A escassez efectiva de alimentos tem sido iludida com o recurso a fertilizantes artificiais e a alimentação artificial dos animais. Mas até isto tem limites. E, por enquanto, tem efeitos extremamente perversos no ambiente, na biodiversidade e na própria saúde de quem consome este tipo de alimentos. E mesmo as boas consciências que arengam sobre a distribuição mais equitativa de alimentos entre os diferentes países e áreas do planeta defendem, no fundo, um maior desequilíbrio energético provocado pelo aumento do transporte, processamento e conservação de produtos alimentares, agravando assim os problemas agrícolas.
Os habitantes dos países mais pobres aspiram legitimamente ao nível de vida das populações dos países mais ricos. Ora, tomando como referência a qualidade de vida de que se desfruta na União Europeia, o planeta não é capaz de proporcioná-la a mais de 2 000 milhões de pessoas, a quarta parte da população terrestre.
Os optimistas acham que se encontrarão sempre soluções, afinal a tecnologia arranjará forma de alimentar toda a gente. Não engendrou as culturas geneticamente modificadas? Só que a chamada "revolução verde" não impede que, segundo a Organização das Nações Unidas, através do seu organismo especializado em alimentação e agricultura, estime que a produção mundial de alimentos, rações e fibras alimentares terá de duplicar até 2050 para conseguir corresponder às necessidades de uma população global em expansão.
CRISE ENERGÉTICA
O excesso de população está na base do problema climático. Há gente a mais a consumir (demasiados) recursos energéticos (que na sua grande maioria, e até prova em contrário, são de origem fóssil) o que provoca a emissão de mais dióxido de carbono para a atmosfera do que é aceitável. Mas as emissões de metano, embora tenham menos influência que as de dióxido de carbono, mostram um crescimento muito superior.
Costumam medir-se os níveis actuais de aquecimento do planeta tendo como referências os valores pré-revolução industrial do fim do século XIX. As alterações climáticas têm sido sobretudo atribuídas ao dedo humano na produção excessiva de dióxido da carbono. Trata-se de largar rapidamente os combustíveis fósseis e de electrificar tudo o que seja possível. No meio deste alarido as concentrações de metano (como a eliminação de resíduos e gado) continuam a aumentar a um ritmo muito elevado, embora também muito discreto, com o palco dos media tomado pela "descarbonização". É por isso interessante que os especialistas do Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas, autoridade na matéria, ponham o acento tónico no aumento do metano no seu último relatório, divulgado no início de Agosto de 2021.
CRISE DE EMPREGO
Há, entretanto, uma outra "crise" que, no futuro, estará ligada, e de que maneira, ao aumento da população. A revolução tecnológica e digital, com a introdução da inteligência artificial (IA), "machine learning" (máquinas capazes de aprender e se aperfeiçoarem), realidade aumentada, automação e robotização dispensarão mão-de-obra. Esta só será necessária em maior quantidade em "sectores intensivos", sendo que estes serão em cada vez menor número.
Por outro lado, a longevidade aumentou muito e a permanente revolução na medicina leva a crer que a esperança de vida, pelo menos, estabilize numa idade avançada. A tecnologia que permitiu fazer as vacinas mais eficazes contra a Covid-19 vai permitir curas há pouco tempo impensáveis.
Vai haver menos empregos e a vida vai ser mais longa.
Havendo a visão de uma economia que recorra aos meios tecnológicos mais avançados são inúteis as lamúrias, ou mesmo a histeria política, que, em certos países acompanham o declínio da respectiva população activa. Em Portugal, como noutros países (mas Portugal, nesta matéria, deve ser um exemplo emblemático), a redução da população activa indígena tem muito menos a ver com a natalidade que com o custo fiscal do trabalho. Este traduz-se em salários mais baixos, com a emigração de muita gente qualificada e a retracção da procura de trabalho pelos menos qualificados, ou que se apresentam como tal, em grande parte emigrantes, em conjunturas económicas mais difíceis ou mais incertas, como é o caso da situação pandémica que restringiu drasticamente a actividade do turismo. Aos diferentes países, que não têm, de facto, problemas de mão-de-obra (excepcionando-se casos muito especiais, como alguns países do Golfo), atendendo a que a procura de trabalho deverá ser cada vez mais escassa em função da revolução tecnológica, interessa apenas a "importação" de pessoas qualificadas.
CRISE DA SEGURANÇA SOCIAL
O recurso à imigração para colmatar as quebras de natalidade nos países mais ricos não alivia os problemas da segurança social, em que há cada vez menos jovens a contribuir para as pensões do crescente número de idosos. Acontece que os jovens que são atraídos para um determinado país, normalmente constroem aí a sua vida e também...envelhecem, aumentando o contingente dos grisalhos que recebem pensões de reforma.
As políticas dirigidas ao aumento das taxas de natalidade não só são absurdas, pois incidem sobre um falso problema (o verdadeiro problema é o excesso de população mundial) como são injustas. Por exemplo, as medidas de fiscalidade que conferem reduções substanciais na taxa de imposto por cada filho a mais, põem os que não têm filhos a pagar a prole dos outros.
O aumento da população é um falso desafio para a segurança social. Haverá, menos gente a contribuir, porque a "nova economia" exige menos emprego e mesmo os sectores que apresentam uma forte componente de emprego ou menos qualificado ou sazonal, não escaparão ao impacto da inovação sustentada nas novas tecnologias. A segurança social terá que reformular-se, completando os modelos públicos de repartição (que deverão encaminhar-se, cada vez mais, para a capitalização das contribuições) com os esquemas de capitalização privados e preparar-se para "diversificar" o seu financiamento, em que o crescente recurso aos orçamentos de Estado deve ser visto como uma forte possibilidade. Até porque o trabalho irá ganhar novas formas, com parte da população activa a ter uma prestação muito mais pequena, colocando novas exigências ao apoio do Estado a quem trabalha menos e ganha menos ou mesmo a quem não trabalha.
Ao contrário do que se tenta fazer acreditar é no excesso de população e não na quebra da natalidade que está a via para o suicídio da segurança social nos estados do tipo ocidental que hoje conhecemos.
Estes alguns efeitos da crise do excesso populacional. É impopular defender o decrescimento, sobretudo da população. Todavia, ignorar os limites ao nosso crescimento tem consequências catastróficas. O mundo deixa de ser sustentável. Um mundo poluído onde o clima se altera, a água escasseia, a bio-diversidade é eliminada, os sistemas sociais degradam-se e será inevitável que esse mundo específico que consome muito menos que o ocidental, perante condições ainda mais adversas, migre massivamente, gerando-se vagas imparáveis de refugiados.
* Informações recolhidas em Joan Martinez-Alier and Eduard Masjuan, 'Neo-Malthusianism in the Early 20th Century'