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22-04-2022

No terceiro milénio dos prodígios tecnológicos e da transição energética o mundo rapidamente se muta numa distopia em que somos mais pobres e mais vigiados 


A extrema volatilidade dos preços dos bens essenciais, energia e cereais, reflecte bem a instabilidade introduzida pelas sanções económicas à Rússia no mercado mundial.

Há a certeza de que a Europa não conseguirá substituir os 150 mil milhões de metros cúbicos de gás russo que consome anualmente, pois a capacidade instalada não dá para isso, e há, por outro lado, a incerteza das fontes e opções energéticas que irão prevalecer. Que já não serão as que foram alinhadas para a 'descarbonização' do planeta. Até porque 'areias raras' e outros materiais indispensáveis às alternativas para a produção de electricidade se encontram, em larga medida, na China e na Rússia.

Uma desvantagem para o chamado 'Ocidente' num mundo que ameaça seriamente voltar a uma lógica de blocos políticos e económicos e à prevalência da desconfiança, que o diálogo multilateral no seio de organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o próprio grupo Banco Mundial/FMI ajudaram muito a dissipar.

A Europa perderá autonomia, ficando dependente do poder norte-americano. É a grande perdedora geopolítica da guerra na Ucrânia. Não tem energia, não tem poder militar próprio, não tem autonomia de decisão, depende da Nato e dos Estados Unidos.

Os países emergentes desconfiarão e poderão afastar-se do dólar, dos sistemas de pagamentos ocidentais, desenvolvendo sistemas e instituições próprias e incentivando mais as trocas entre si.

Veremos como as corporações nas diferentes áreas, desde a financeira à tecnológica ou à industrial, reagem a este recúo na globalização.

É irónico que não tenham sido os mais 'nacionalistas' a pôr um travão tão a fundo ao andamento da economia global. Historicamente irónico. Como seria, há tempos, completamente improvável que fossem esses 'nacionalistas' a ter um papel mais 'moderado' face à situação criada.

O efeito económico mais imediato da tragédia ucraniana é a consolidação e reforço da inflação e a desaceleração da economia global. A projecção mais recente (19 de Abril) do Fundo Monetário Internacional (FMI) é de uma inflação de 5,7% e 8,7% nos mercados emergentes e economias em desenvolvimento - 1,8 e 2,8 pontos percentuais acima do projetado em janeiro passado. "Os preços dos combustíveis e dos alimentos aumentaram rapidamente, atingindo com mais força as populações vulneráveis ​​em países de baixo rendimento", diz o FMI.

O crescimento global deverá desacelerar para 3,6% em 2022 e 2023 e, para além deste ano, cair para 3,3%.

Estas as estimativas por agora, faltando ainda medir os impactos da retracção do comércio internacional e de um reajustamento nos sistemas de pagamentos, incluindo electrónicos, o que deverá abanar os meios financeiros. A pressão sobre os preços dos bens básicos, anunciando-se, com a redução drástica da oferta no mercado de cereais, uma crise alimentar em países mais desfavorecidos.

O endividamento também voltará a pesar mais sobre os orçamentos nacionais. Os países mais endividados suportarão juros mais elevados, o que, na perspectiva mais 'benigna', diminui a margem orçamental, ou seja, o dinheiro de que o Estado necessita para cumprir as suas obrigações. Num cenário mais sombrio pode levar a quebras de tesouraria que conduzam os Estados a pedir socorro externo. Na Europa é de admitir que o Banco Central Europeu volte a uma política de compra de dívida aos Estados mais aflitos, diminuindo a pressão de juros altos, que afectarão toda a economia. Será suficiente para evitar rupturas financeiras?

Os governos resistirão a aumentos salariais e actualizações de pensões para evitar que a inflação importada ganhe uma componente interna. Em linguagem económica isto significa que os governos irão evitar, enquanto puderem e onde puderem, os chamados 'efeitos de segunda ordem' da inflação, em que a alta dos salários pressiona ainda mais os preços.

Os rendimentos das populações cairão. A quebra do poder de compra poderá, sugerem algumas análises, ser maior na Rússia ou na China, mas afectará fortemente a Europa, muito mais que os Estados Unidos, que têm autonomia energética.

Com mais inflação, menos folga nos dinheiros públicos, contracção no comércio e turbulência nos mercados vamos empobrecer.

No terceiro milénio dos prodígios tecnológicos e da transição energética o mundo rapidamente se muta numa distopia em que somos mais pobres e mais vigiados.

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