Costa, o absolutista

Sob a bonomia e a comunicação fácil e certeira, António Costa exerce a forma mais eficaz de poder, impondo a sua vontade ao partido, ao governo e ao Presidente da República. Tem a visão esclarecida de que o poder não se divide e por isso morde-se pelo erro de ter chamado "melhor amigo" a outro.
Costa conquistou uma maioria absoluta porque acredita que o poder, para se exercer, tem de ser absoluto. Endrominou a Geringonça, manipulou-a como quis numa fase de "reposição" da normalidade anterior à Troika (a intervenção externa a que Portugal recorreu por o antecessor socialista de Costa no Governo, Sócrates, ter ignorado a crise financeira internacional e aumentado irresponsavelmente a dívida pública).
Costa rodeou-se do seu núcleo duro, muito dele colhido nas protecções e promoções que cultivou no seu longo percurso na estrutura socialista, assumiu as suas prioridades e teve, no plano europeu, onde se move com desenvoltura, uma atitude diplomática equilibrada do ponto de vista dos interesses do país, nomeadamente no que toca à posição face a duas guerras em curso, na Ucrânia e no Golfo. Não haverá grandes razões de queixa quanto às posições do primeiro-ministro sobre o apoio à Ucrânia (Portugal é membro da NATO), bem como quanto ao possível alargamento da União Europeia, e ao reivindicado aumento dos gastos em defesa no âmbito da aliança militar. António Costa conhece os riscos que comportam um alargamento a mais países do leste europeu, que vão devorar recursos da comunidade. Registe-se que a ministra das relações externas alemã, a segunda na hierarquia do governo germânico, defende a queda da regra da unanimidade em decisões como a fiscalidade e a defesa da União Europeia face ao exterior, o que representa o golpe final na soberania que ainda sobra aos estados-membros, em que os mais pequenos, como Portugal, passarão, se a ideia for adiante, a merecer uma inequívoca irrelevância.
Talvez por se sentir muito enfronhado nestes assuntos e por um excesso de segurança na gestão da situação interna - ter-se-á sentido pletórico no meio de anões indígenas da política que pouco ou nada têm para dizer - refinou uma atitude "posso, quero e mando" sobre o governo que construiu. Imaginou que não distribuía poder. Mas distribuía. O grande problema nestas coisas é saber a quem e como distribuir o poder. António Costa não soube. Helena Garrido tem razão quando diz que ele via "o país como seu". Expôs-se à intriga com consequências judiciárias sem disso se aperceber. A autoconfiança cegou-o.
Cimentou esta autoconfiança na superação de diversas barreiras, conseguindo sobreviver a uma crise internacional decorrente da pandemia que se estende por duas guerras, com a Europa à beira da recessão e Portugal a ver o seu relativo crescimento a minguar, com as exportações a caírem mês após mês.
Nunca lhe terá passado pela cabeça que seria derrubado pelo aparelho judicial, que também sobranceiramente não quis reformar, desperdiçando a oportunidade que Rui Rio lhe deu para o fazer. "À Justiça o que é da Justiça" foi a frase de refúgio do ainda primeiro-ministro português. O processo judicial, tanto como as primeiras fugas de informação indiciam, poderá não ter pernas para andar, mas, com ou sem elas, derrubou um governo que dispunha de trunfos importantes (sobretudo ao nível do financiamento europeu) e provocou a mais séria crise de regime de que há memória desde o 25 de Abril.
O balanço do consulado de Costa tem pontos positivos, estando embora longe de ser globalmente favorável. O rendimento médio dos cidadãos portugueses é ainda muito baixo e os grandes sistemas públicos vivem em crise. O de saúde implode e o de educação também apresenta um quadro sombrio. A justiça não foi reformada, como é público e notório e das consequências da omissão agora decerto se apercebeu António Costa. A reforma fiscal é tímida e os recursos do Estado para ocorrer a necessidades sociais imensos. Em suma, o país cresceu menos do que devia e os grandes sistemas públicos (saúde, educação, fiscalidade, justiça) resvalaram para um quase colapso.
Mas não foi isso que derrubou António Costa. O que, afinal, pôs termo ao seu consulado foi um parágrafo num comunicado da Procuradoria Geral da República referindo o seu envolvimento num eventual inquérito criminal. O primeiro-ministro achou que, confrontado com a suspeição da sua participação numa nuvem de corrupção, só lhe restava demitir-se, atitude de imediato aplaudida por todos os quadrantes de opinião. Só que os equívocos e a aparente falta de consistência dos "indícios" avocados pelo Ministério Público rapidamente alterou a opinião inicial. Agora, face às conclusões do juiz de instrução, que apontam para a fragilidade dos indícios de crime referidos no processo baptizado "Influencer" surgem, por entre a confusão, duas posições entre os comentadores da política doméstica. Uns acham que Costa fez o que tinha a fazer ao demitir-se, não por causa do atribulado parágrafo, mas antes devido ao ambiente "tóxico" que envolveu a governação socialista. Outros, concluem que "se precipitou". Uma paródia.
É interessante o papel que os media têm neste imbróglio. Conquistada pelos socialistas a maioria absoluta o espectáculo da política interna tornou-se quase desinteressante. Pouco apetecível às audiências. A reacção foi esmiuçar as fraquezas do novo "poder absoluto" que António Costa personificava. Casos como o atropelamento pelo carro do ministro da Administração Interna de um operário na autoestrada em excesso de velocidade e, acima de tudo, o caso Galamba fizeram "render o peixe". O caso TAP originou e apimentou as trapalhices de João Galamba.
Tudo isto é péssima informação, servindo, no entanto, "investigação" dos media para alimentar posteriores "indícios criminais". Embora já poucos acreditem em inocentes nestas estórias os media são tudo menos "inocentes", comportando-se contudo como tal. Não vale a pena confrontá-los na sua responsabilidade, respondem aos gritos de meninas ofendidas.
Portugal vai para eleições no meio de uma grave crise internacional e disso ninguém tem culpa: nem o aparelho judicial, nem o aparelho de comunicação, dominado pelas televisões, nem mesmo António Costa e a desastrada gestão que faz dos seus próximos. A culpa deve ser pois dos cidadãos.
Tudo isto soa a gargalhada, amarga, num ópera bufa tão ao gosto das disputas lusas pelo poder.
Adivinha-se que a campanha eleitoral que já se iniciou não irá ser muito interessante, discutindo-se muito as oscilações nas sondagens e o papel do partido de direita populista Chega no futuro arranjo político do parlamento. Nada de relevante para o desenvolvimento do país merecerá atenção dos políticos e dos media.
A programação para os próximos meses anuncia um espectáculo protagonizado por Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura, com as revelações do processo judicial que derrubou o governo em pano de fundo. Mais um embuste.