A Ucrânia, o PCP e a falsa surpresa

O PCP disse exactamente o mesmo que vem dizendo há anos sobre a Ucrânia. Não trouxe surpresa nenhuma. Quem foi surpreendido não foram os comunistas portugueses, fomos quase todos nós, virados para outros temas em voga no Ocidente
É preciso não conhecer de todo o Partido Comunista Português (PCP) para acusá-lo de cumplicidade com Putin. Segundo a fábula mediática que defende esta tese, o PCP teria embalado na ilusão de que o presidente russo poderá reerguer o império soviético. Uma ideia estúpida.
Se houve alguém em Portugal a ligar persistentemente à questão ucraniana foi o PCP. A Ucrânia não é, de facto, um assunto de hoje para os comunistas portugueses que, desde 2014, segundo uma excelente recolha feita pelo Observador, são activos na denúncia do, na sua perspectiva, avanço do imperialismo americano ou, por outras palavras, da NATO e da destabilização do equilíbrio entre as potências militares que definem o jogo mundial: Estados Unidos, China e Rússia.
Mais ainda do que isto o PCP mostrou-se preocupado com o processo de ilegalização dos comunistas ucranianos e a prevalência de forças 'neo-nazis e xenófabas", empregues na revitalização do exército de Kiev e utilizadas contra os separatistas da região do Donbass, onde as auto-proclamadas repúblicas de Donetz e Lugantz foram agora reconhecidos pela Federação Russa, precedendo a invasão da Ucrânia e, já agora, sucedendo-se ao encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno, na China.
O PCP não tem ilusões quanto a Putin e ao regime russo. Este é dominado por "élites e detentores de grupos económicos" que têm "uma concepção de classe oposta à do PCP". Os comunistas portugueses irritaram-se por Putin ter invocado Lenine como o "inventor da Ucrânia" actual, o que constitui uma "grosseira deformação da notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas".
Estas afirmações, no PCP, são para levar a sério. Ao contrário dos "partidos burgueses", (mais ou menos dependente do carisma do líder, como observou um dos fundadores da teoria política contemporânea, Max Weber) os comunistas têm, enquanto colectivo, um forte compromisso com a ideologia. E não há nenhum caso em que o pragmatismo tenha sacrificado a ideologia. Goste-se ou não dela. Eu não não gosto.
Havia um candidato brasileiro muito popular que ia ajustando os princípios ao gosto da audiência. Um dia alguém perguntou-lhe: "O senhor não tem princípios?". Ao que o político respondeu: "princípios tenho, não tenho é compromisso com eles". Não é o caso do PCP. O compromisso com os princípios ideológicos leva-o, no máximo, a "comer sapos" eleitorais conjunturais.
Até à queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, o PCP tinha uma referência forte a que se agarrar no jogo dos donos do mundo. Uma parte da sua força, aliás, advinha do facto de ser, dentro de portas, o único partido alinhado, e com relações privilegiadas, com uma das duas superpotências que mandavam no planeta.
A queda do Muro tirou-lhe o amparo geopolítico. Ficou com uma Rússia de que diz o que diz. E uma China com cuja orientação comunista sempre esteve em divergência. Preocupa-o a expansão da NATO, sobretudo na Europa, onde se confronta directamente com o poderio militar da Rússia. E também o preocupa, no caso da Ucrânia, a tentativa de ilegalização de partidos irmãos, incluindo a foice e o martelo.
O PCP disse exactamente o mesmo que vem dizendo há anos sobre a Ucrânia. Não trouxe surpresa nenhuma. Quem foi surpreendido não foram os comunistas portugueses. Fomos quase todos nós, entretidos com outros temas pueris em voga no Ocidente. Não eles.