
Indomável
Os irmãos Coen recriam com grande talento um género que se julgava esgotado, o western. Um filme que enche as medidas e que, entre outros virtuosismos, conta com três interpretações de luxo
(Fev 2011, publicado no semanário O País)
O último filme dos irmãos Coen, Joel e Ethan, que já nos brindaram com obras notáveis como "Este País não é para Velhos" visita a memória de um dos mais populares géneros cinematográficos, o western, o género cinematográfico norte-americano por excelência, consideram alguns, reescrevendo-o. O desafio que se colocava, à partida, era de vulto: fazer um "remake" explícito de "A Velha Raposa" (1969), um filme realizado por Henry Hathaway, com base na novela de Charles Portis, e que constituiu a apoteose do mais mítico dos intérpretes do género, John Wayne, valendo-lhe o seu único Óscar.
Os irmãos Coen ganham o desafio, prestando, de uma forma muito moderna, ou antes, pós-moderna, uma tremenda homenagem ao western. Indomável (True Grit) é uma obra onde se detectam mil e uma referências ao western e às diversíssimas facetas que o género foi assumido nas mãos dos seus mais diferentes autores, desde os grandes clássicos, com John Ford e Howard Hawks à cabeça, às variações "europeias" de Sergio Leone (os chamados "western spaghetti), passando, entre muitas outras de "tirar o chapéu", pelas magníficas obras de Clint Eastwood, que nos legou o que já se imaginava ser o derradeiro western, Imperdoável (Unforgiven). Aliás, foi Eastwood que protagonizou a célebre trilogia de Leone (Por um Punhado de Dólares, Por Uns Dólares Mais e Três Homens e Conflito).
Fazer um western, ou mais chãmente, um "filme de cowboys" é, para um realizador, algo idêntico à interpretação de alguns dos incontornáveis temas clássicos para um músico de jazz. E é muito difícil, face ao acervo que o género reúne, introduzir grandes variações, um solo admirável, um improviso inaudito.
Se o western clássico glorificava o herói e cultivava uma moral simplista, fazendo uma estrita separação entre os "bons" e os "maus", já conhecêramos excelentes subversões destes padrões em westerns que conferiam o protagonismo ao anti-herói (sobretudo após as incursões de Leone). Também já havia sido introduzido o humor, a paródia e mesmo o burlesco em vários westerns famosos, contrastando com a dramatização romanesca presente nos clássicos. Assim como os índios já haviam passado de predadores a vítimas (a condição dos nativos da América do Norte é objecto de memorável abordagem em Um Homem Chamado Cavalo e Danças com Lobos), as mulheres mudado de condição, passando de figuras secundárias a principais e os axiomas estéticos tradicionais revolucionados, com os grandes espaços que abriam tradicionalmente os filmes de "cowboys, índios e pistoleiros a converterem-se em grandes planos.
Pensou-se que o género se esgotara e que um dos indícios disso mesmo teria sido o desaire comercial de As Portas do Céu (Heaven´s Gate) de Michael Cimino, de 1980, um filme de elevadíssimo orçamento que levou à falência os estúdios United Artists. Os irmãos Coen demonstraram que afinal não era bem assim, realizando um western que se tornou um enorme sucesso de bilheteira já em pleno Século XXI. Em Indomável é bem visível o seu cunho pessoal: o humor é negro e diverte mesmo a sério, a caracterização é tão rigorosa que roça a caricatura e os personagens são suficientemente surpreendentes para terem brotado da criatividade dos Coen. A vingança, uma das motivações predilectas do género, exerce-se com uma crueldade fria e, ao mesmo tempo, acidental. A autoridade é movida pelos dólares e os valores morais começam e acabam numa menina de 14 anos, Mattie Ross (Hailee Steinfeld) que, determinada, inteligente e, sobretudo, muito precoce, procura vingar o assassinato do pai por um seu ex-empregado, o facínora Tom Chaney (Josh Brolin) que se juntara a um bando fora-da-lei em território dos índios, os quais, curiosamente, nunca aparecem.
A realização dá-nos excelentes momentos cinematográficos, com planos e movimentos de câmara originais, a fotografia de Roger Deakins capta e reinventa magnificamente a paisagem e a música de Carter Burwell pontua, com rara beleza, a narrativa.
As interpretações são de luxo. Jeff Bridges, no papel Rooster Cogburn, o velho Marshal contratado por Mattie, tem um desempenho estupendo. Sujo e bêbado ao ponto de cair do cavalo mas muito conhecedor do terreno em que se mexe e eficaz no uso da arma mostra à saciedade que, desta feita, "aquele país é para velhos". Matt Dimon, no papel de LaBouef, um "Texas Ranger" que se junta na caça ao bandido com o fito pouco nobre de ganhar o chorudo prémio oferecido por um senador do Texas pela sua captura, também surge a grande nível, demonstrando que o seu talento ultrapassa largamente o estatuto de actor de acção ou de peças romanescas. E Haille Steinfeld, na pele de Mattie, numa interpretação magistral, que a coloca verdadeiramente no centro da trama, mas que estranhamente Hollywood nomeou como candidata ao Óscar de melhor papel feminino secundário... que, aliás, não ganhou. Indomável foi para a cerimónia do passado domingo com 10 nomeações mas não logrou arrebatar qualquer estatueta. O que não o impede de ser um excelente filme.