
Ex Machina
Um filme excepcional este que marca a estreia como realizador do romancista Alex Garland. Uma estória sobre a possibilidade, bem efectiva, de criação de inteligência artificial que coloca, com elegância e subtileza, inúmeras questões sobre a nossa identidade e sobre o futuro
(Abr 2015, publicado no semanário O País)
O que é a vida? Alguns cientistas asseguram que ela já existiu em Marte e que é detectável em pedaços do planeta vermelho caídos na Terra há muitos milhares de anos. Havia, na altura, em Marte, água, aminoácidos...tudo o que é necessário à criação de vida tal como a concebemos. Mas haverá outro tipo de vida? A probabilidade de ela existir no universo tal como actualmente o apreendemos, para além da que existe no planeta Terra, é fortíssima mas nada nos garante que seja idêntica aquela que conhecemos.
Há muitas hipóteses que a ciência hoje coloca à existência de vida e à criação, pelo homem, de inteligência artificial. Cada 14 meses os computadores duplicam as suas capacidades. É uma questão de tempo conseguirmos criar inteligência artificial. O que não sabemos bem é como será essa inteligência artificial, se ganhará uma consciência.
Conseguiremos, dentro de relativamente pouco tempo, máquinas iguais a nós? Pelo menos muito parecidas seguramente que sim. E quais as consequências disso? Qual a nossa relação com androides que são capaz de se fazer passar por nós? E o que acontecerá quando estes ganharem a capacidade de se auto-produzir?
Estes temas têm sido centrais nos grandes filmes de ficção científica, desde Blad Runner (em que os androides se revoltam contra a sua curta esperança de vida) a Matrix, uma parábola sobre a sociedade pós-moderna que desenvolve a hipótese de os computadores nos terem enclausurado na ilusão de um mundo virtual (ou serão os nossos descendentes que, a partir do futuro, criaram o nosso mundo, afinal de contas, virtual?).
E citámos Blad Runner e Matrix deliberadamente para falar nesse filme excepcional que é 'Ex Machina'. São, os três, a exploração de indagações sobre a nossa identidade feita de uma forma esteticamente luxuosa. Consideram os três que o futuro não é necessariamente uma utopia, um mundo bem melhor que este graças aos grandes feitos científicos e tecnológicos da espécie humana, mas um mundo bem pior, perigoso e hostil. Não caminhamos necessariamente em direcção à felicidade, embora, neste aspecto, 'Ex Machina' deixe apenas a porta entreaberta.
É o primeiro filme do escritor e argumentista Alex Garland. Em 2000, Danny Boyle adaptou ao cinema o seu 'best-seller' 'A Praia', protagonizado por Leonardo Di Caprio. Garland ganhou o gosto pela 'sétima arte', assinando os argumentos do que serão talvez os melhores filmes de Boyle: '28 Dias Depois' (2002) e 'Missão Solar' (2007). Trabalhou ainda o guião de 'Nunca me Deixes' e foi responsável pela transposição para o cinema da banda desenhada Dredd (2012).
Estreia-se agora como realizador. E que estreia! 'Ex Machina' é impecável no desenvolvimento do tema, uma narrativa que se desenrola a um ritmo calmo e perturbante e que não aborrece por um único momento. É denso e surpreendente nas relações entre os personagens, as relações entre duas pessoas e um androide, cheias de enigmas, seduções e traições. É fenomenal nos cenários que nos oferece, quer nos cenários interiores (uma claustrofóbica casa sem janelas e, ao mesmo tempo bela na sua luminosidade, no seu espaço, na sua cor, soberbamente e arrojadamente fotografados), quer nos brilhantes exteriores. A banda sonora do filme é genial, muito tensa e precisa, conseguindo fazer as vezes da acção.
O filme conta a estória de Caleb (Domhnall Gleeson), um programador numa importante empresa de internet fornecedora de conteúdos (podia muito bem ser a Google), que vence um teste que lhe permite participar, durante uma semana, numa experiência feita pelo presidente e génio da empresa Nathan (Oscar Isaac), no seu refúgio privado.
Nathan - e não é por acaso que foi escolhido como génio experimentador uma sumidade dos motores de busca - está a desenvolver inteligência artificial, criando androides, todos femininos, e quer utilizar Caleb para, aparentemente, aferir até que ponto conseguira aproximar a sua mais perfeita criação, Ava (Alicia Vikander), da condição humana. Caleb, Nathan e Ava vão desenvolver uma relação intensa, cheia de sedução, dissimulação e manipulação, e como normalmente as coisas não são o que parecem, é Ava que põe à prova Caleb e não o contrário. Este, apercebendo-se dos intuitos de Nathan, começa a ser movido por questões éticas. Já Ava bate-se pelo que há de mais humano: a sobrevivência.
'Ex Machina' é percorrido por uma enorme tensão do princípio ao fim. Coloca-nos perante dilemas a todos os níveis, perscruta os limites da nossa identidade e também os limites dos corpos. Os desempenhos dos actores são de mão cheia, com uma nota especial para a interpretação de Alicia Vikander no papel de Ava, a que empresta uma subtileza, uma sensualidade extraordinárias. É daqueles filmes a não perder.