RENDIMENTO

A insustentável desigualdade

Os ricos estão cada vez ricos e são também cada vez menos e a metade mais pobre da humanidade retira pouco do crescimento, paga mais impostos e endivida-se. Os especialistas apontam que a desigualdade e a pobreza tornam insustentável o crescimento

Ainda se faziam sentir os efeitos da crise financeira de 2008, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicava, em 2010, um documento relacionando o aumento da desigualdade com a Grande Depressão de 1929 e com a Grande Recessão que teve início em 2007 e atingiu o seu auge nos dois anos seguintes, com o colapso financeiro nos Estados Unidos, a crise da dívida na Europa e a quebra generalizada dos preços no mercado de matérias-primas, provocando sérios danos nas economias dos países em desenvolvimento. A tese, assinada por Michael Kumhof e Romain Ranciére, e que não vincula oficialmente o FMI, assenta num modelo em que a crescente desigualdade no rendimento entre os mais ricos e o resto da população avançou, nos dois momentos históricos, a um ritmo superior à quebra no consumo por ela gerado, sendo esta diferença traduzida no aumento sistemático do endividamento de 95% da população, o que gerou desequilíbrio e crise financeira. Os padrões de poupança e endividamento dos dois grupos de rendimento criaram a necessidade crescente de serviços financeiros e intermediação, com consequente engorda do sector financeiro, tendo em conta o peso dos passivos bancários sobre o produto interno (PIB). Em suma, nas duas grandes crises que afectaram os Estados Unidos, e o mundo, arrastado pelo seu impacto, o aumento permanente da desigualdade de rendimento (origem de quase todas as outras desigualdades) teve um papel crucial, senão mesmo determinante.

A relação entre crescimento e desigualdade tem sido discutida por muitos outros autores. As Nações Unidas consideram a redução da desigualdade um pressuposto do desenvolvimento humano. 'A desigualdade e o crescimento insustentável talvez sejam os dois lados da mesma moeda', sublinham Andrew G. Berg e Jonathan D. Ostry, que dedicam à questão, no âmbito da discussão sobre o tema patrocinada pelo FMI, dois trabalhos, em 2011 e 2014.

Se a desigualdade está na raiz da incapacidade de sustentar o crescimento e os seus efeitos são as crises económicas terá o mundo aprendido a lição de há uma década, quando se receou que o sistema financeiro internacional pudesse desabar? A resposta à pergunta é um rotundo não. As desigualdades são cada vez mais explosivas. O relatório publicado, já este ano, pela Oxfam International, uma organização sediada na Nova Zelândia que combate a desigualdade, com presença em inúmeros países, entre os quais Moçambique, revela indicadores muito elucidativos sobre o agravamento da desigualdade. Os mais ricos aumentaram, na década que se seguiu, 'dramaticamente' a sua fortuna, acentua o documento, cujo título lança a interrogação: "Bens públicos ou riqueza privada?".

A CRUEZA DA DESIGUALDADE

Perto de metade da população mundial vive com menos de 5,5 dólares por dia, enquanto há mais bilionários do que nunca (2 028 ao todo), sendo que a sua fortuna cresce ao ritmo diário de 2,5 mil milhões de dólares. A riqueza é cada vez menos tributada, revelando os diferentes governos grandes dificuldades em fazer incidir impostos sobre ela, recaindo o maior peso da fiscalidade sobre as classes de menores rendimentos. Em cada dólar de receita fiscal apenas quatro cêntimos provêm de impostos sobre a riqueza. A taxa que incide sobre os maiores rendimentos de pessoas individuais decaiu, em média, de 62%, em 1970, para 38% em 2013, enquanto nos países em desenvolvimento se situa em 28%. A par disto, os super-ricos subtraem 7,6 mil milhões de dólares à tributação e as grandes empresas também ocultam quantias fabulosas em contas offshore.

A desigualdade é uma questão que afecta o crescimento económico e que traz consequências socias dramáticas, captando a atenção dos economistas e de entidades multinacionais, como o Fundo Monetário Internacional e as Nações Unidas. Bloqueia o crescimento, embora haja economistas que, na linha de Arthur Okun, que foi conselheiro económico dos presidentes norte-americanos John Kennedy e Lyndon Johnson, considerem que as políticas redistributivas tendentes a minimizar a desigualdade são portadoras de ineficácia, prejudicando, ao invés de ajudar, o crescimento económico.

Os investigadores não apontam, contudo, nesse sentido. 'Os dados históricos usados em nosso trabalho oferecem poucos indícios de efeitos negativos da redistribuição fiscal no crescimento', assinalam Jonathan D. Ostry e Andrew Berg numa das suas indagações sobre a desigualdade e redistribuição de rendimento. Os dois autores apenas detectam alguns 'sinais inconclusivos de que redistribuições em grande escala podem ter efeitos negativos na duração do crescimento', o que é mais que compensado pela 'ligação robusta' entre a redistribuição média e a respectiva redução das desigualdades e o crescimento elevado e duradouro. As fontes e as metodologias utilizadas pelos especialistas são detalhadamente esclarecidas. Ostry e Berg sublinham que recorrem a uma nova série de dados multinacionais que distingue minuciosamente a desigualdade líquida (após os impostos e transferências) da desigualdade de mercado (antes dos impostos e transferências), o que lhes permite calcular as transferências redistributivas para um grande número de países (avançados e em desenvolvimento) ao longo do tempo.

Os estudos mais 'académicos' e formalizados sobre a desigualdade e as suas causas, todos eles com carácter pioneiro, apesar do problema todos os dias nos bater à porta, apontam assim para que: primeiro, as desigualdades prejudicam o funcionamento da economia e, depois, os antídotos do fenómeno, como a redistribuição do rendimento e a oferta de mais e melhores serviços públicos, não prejudicam o crescimento económico.

DISTOPIA

Todavia, ela, ou elas, as desigualdades, não serão endémicas ao desenvolvimento económico? Basta pensar que, apesar de persistirem e mesmo avolumarem-se, o mundo...ainda não parou. Do ponto de vista da viragem tecnológica que vivemos, 2018 terá sido mesmo um ano marcante. A visão de um mundo que cresce com desigualdades cada vez mais cavadas é quase apocalíptica, assemelhando-se, o que é perturbante às medonhas distopias criadas pelo cinema. Seria um mundo onde coabitariam uns poucos muito ricos e multidões de pobres, cada vez mais urbanizados pela globalização.

A questão da desigualdade não é menos importante no equilíbrio da economia planetária que a do ambiente. As duas anunciam a catástrofe. Coloca, aos economistas, questões básicas, como a do equilíbrio da economia, a capacidade da procura absorver a oferta, o nível da taxa de poupança ... As insuspeitas conclusões de alguns economistas mostram porque o alerta para a questão da desigualdade se tornou tão frequente nas declarações feitas por algumas das personalidades mais influentes (entre as quais alguns empresários) e também mais preocupadas com o actual estado das coisas, como é o caso da directora executiva do FMI, Christine Lagarde.

Michael Kumhof e Romain Ranciére, em "Desigualdade, Alavancagem e Crises" chamam a atenção de que as crises custam caro, o que torna 'mais desejáveis', do ponto de vista da estabilização macroeconómica, as políticas de redistribuição do rendimento, preferíveis a crises de endividamento e resgates. Apontam, à produção teórica, a desigualdade como nova característica essencial que deve ser explorada pelos modelos que tentam explicar o endividamento das famílias e as crises financeiras.

Não haverá governante insensível ao problema. Resta saber se as autoridades, querendo contrariar o aumento da desigualdade, efectivamente o conseguem. A elevada evasão fiscal, por parte dos mais ricos, mostra que as regulamentações mais apertadas introduzidas no sistema financeiro, após o susto de 2018, continuam a ter um alcance limitado.

26 PESSOAS POSSUEM A MESMA RIQUEZA

QUE A METADE MAIS POBRE DO MUNDO

PROGRESSOS QUE ABRANDAM

A redução da pobreza extrema (definida pelo Banco Mundial como o rendimento de 1,9 dólares por pessoa diariamente) e o acesso de grandes camadas da população a bens de consumo são duas grandes conquistas das últimas décadas. No entanto, desde 2013, como assinala o Banco Mundial, o ritmo de redução da pobreza desacelerou. A pobreza extrema aumenta actualmente na África subsariana. Perto de metade da população mundial (3,4 mil milhões de pessoas), subsiste com menos de 5,5 dólares por dia, que é a nova linha traçada pela instituição internacional para definir a pobreza extrema em países de elevado e médio rendimento. A desigualdade de rendimento acentua a desigualdade de género, com a mulheres a incluírem-se frequentemente entre os mais pobres, sobretudo durante a maternidade, realizando trabalho que não é remunerado porque socialmente não é suposto sê-lo.

Os custos da desigualdade são devastadores. Em 2019, 262 milhões de crianças estão privadas de frequentar a escola, morrerão cerca de 10 mil pessoas por não terem acesso a serviços de saúde e não serão pagas 16,4 mil milhões de horas de trabalho, realizado sobretudo por mulheres que se encontram em situação de extrema pobreza. A desigualdade é sexista. Na ainda maior economia do mundo, os Estados Unidos, um homem branco solteiro possui 100 vezes mais riqueza (rendimento e património) que uma mulher hispânica solteira. E quanto mais desigual uma economia maior a desigualdade de género.


  • UM AUMENTO DE APENAS 0,5% NA TAXA QUE INCIDE SOBRE AS GRANDES FORTUNAS GERARIA MAIS DINHEIRO DO QUE O CUSTO DE:
  • EDUCAR 262 MILHÕES DE CRIANÇAS QUE NÃO FREQUENTAM A ESCOLA E PROVIDENCIAR CUIDADOS DE SAÚDE QUE POUPARIAM A VIDA A 3,3 MILHÕES DE PESSOAS*
  • HÁ MAIS MILIONÁRIOS DO QUE NUNCA : 2.208*... E A SUA RIQUEZA CRESCE EM 2,5 MIL MILHÕES DE DÓLARES POR DIA

*(em 2019)

(Adaptado do texto publicado na Exame Moçambique nº 75, Março de 2019)


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