Cloud Atlas

(Dez 2012, publicado no semanário O País)    

Uma narrativa complexa, desconcertante e maravilhosamente bem conseguida, uma montagem executada com a precisão de ourives, fotografia e cenários deslumbrantes, uma caracterização e guarda-roupa impecáveis, uma banda sonora luxuosa, enfim, uma obra excepcional, muito provavelmente uma obra-prima

A última e surpreendente obra de Tom Tykwer, Andy e Lana Wachowski desdobra-se no tempo, nos géneros, nos temas e desmultiplica os mesmos actores por diferentes personagens em seis épocas distintas, entre o século XIX e um futuro pós-apocalíptico. As estórias só se vão interligando à medida que o filme avança, surgindo inicialmente ao espectador como um alucinante exercício de zapping, o que até poderia prejudicar a atenção. Mas não. As seis diferentes narrativas vão-se misturando com uma fluidez genial, invocando temáticas como o sentido da vida, a bondade, a importância das nossas acções e o seu reflexo no futuro, o amor eterno, a opressão, o racismo, a teoria da reencarnação, a desumanidade extrema a que pode conduzir o capitalismo...e mais. Tanto mais que justifica plenamente mais que uma visualização. Até por que a exuberância visual que nos deslumbra, a fotografia soberba, a impecável caracterização, a excelente banda sonora, a mestria da montagem fazem deste filme e da sua complexidade um objecto de desejo. Uma obra excepcional senão mesmo, e isso, na verdade, só o futuro o confirmará, uma obra-prima, que apela constantemente à participação do espectador, num grau sem precedentes na memória do cinema. Cloud Atlas, inspirado no best-seller do escritor inglês David Mitchell, publicado em 2004, mostra que há terreno a desbravar na sétima arte mau grado por vezes quase nos verguemos à resignação, face à produção insuportavelmente repetitiva da indústria cinematográfica, de estarmos condenados ao entretenimento dubitativamente talentoso.

O filme era aguardado com expectativa, sobretudo face ao percurso dos seus autores. O alemão Tom Tykwer legara-nos Corre, Lola, Corre e Heaven - Por amor, que nos puseram em alerta quanto ao seu percurso. Andy e Lana Wachowski tinham averbado um claro fracasso com o seu último filme, Speed Racer, de 2008, após nos terem deixado essa obra maior chamada Matrix, que não suscitou nas suas duas sequelas a mesma quase unanimidade do filme original. Tom Tykwe e Andy e Lana Wachowski jogaram tudo por tudo, lançaram-se num projecto muito ambicioso, arriscadíssimo e muitos poucos se atreverão a dizer que falharam. Ainda que gostos não se discutam o espaço para dizer mal de Cloud Atlas é mínimo.

As seis estórias de Cloud Atlas desenrolam-se ao longo de quinhentos anos, entre o classicismo do século XIX e o futurismo da Coreia do Sul ('Neo Seoul') em 2144 - com cenários de se tirar várias vezes o chapéu, o que não espanta dada a presença dos criadores de Matrix - e o mundo pós-apocalíptico visto através da sobrevivência do que resta da espécie humana nas Ilhas do Havai. O primeiro episódio situa-se no Oceano Pacífico, em 1849, e relata uma estória de escravatura. O segundo passa-se em 1936, no pós-guerra britânico, e conta-nos a determinação de um jovem músico bissexual em conseguir realizar uma obra-prima musical, o 'The Cloud Atlas Sextet'. O terceiro decorre em 1973, e fala-nos de uma investigação levada a cabo por uma jornalista em torno de os rumores que se ouvem acerca da possibilidade de uma central nuclear originar uma catástrofe. O quarto relata a jornada desvairada de um editor veterano e a aventura de um grupo de idosos que procuram escapar de um lar. No quinto, situado em 2144, uma empregada clonada de uma cadeia de restaurantes 'fast-food' é consciencializada sobre a verdadeira realidade em que vive e acaba a liderar uma revolução. No sexto, um pastor que pertence a uma pequena tribo de pacíficos selvagens ajuda uma jovem descendente da antiga civilização a encontrar as respostas que procura.

Estes tempos narrativos intersectam-se, de uma forma não linear e aparentemente confusa, envolvendo o espectador no jogo de montagem e na descoberta do (s) diferente (s) fio (s) condutores, das relações que se vão estabelecendo entre personagens e factos aparentemente desconexos. Uma técnica utilizada na literatura, quando a estrutura narrativa assenta num mosaico cujas partes se vão aproximando com o desenrolar da estória, mas que nunca fora aplicada no cinema com tamanho rasgo e ousadia.

O elenco de luxo (Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Hugh Grant) é o mesmo dos diferentes momentos narrativos, sendo colocado aos actores o desafio de neles incarnarem personagens diferentes, empreendimento que é claramente bem sucedido.

Complexo, inovador, visualmente deslumbrante, magnífico em todos os aspectos, o que mais há para dizer de Cloud Atlas senão debitar o lugar-comum de que merece, sem sombra de dúvida, ser candidato aos Óscares que a academia de Hollywood anualmente atribui e que são vistos como a consagração suprema de uma obra cinematográfica? Aguardemos pela edição de Cloud Atlas em DVD para poder saborear nesta obra única o que terá escapado à surpresa da sua primeira visualização.

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