
Cisne Negro: um ensaio perfeito sobre a perfeição
(Fev 2011, publicado no semanário O País)
Uma obra notável de Aronofsky. Será muito difícil apontar defeitos a Cisne Negro. Não admira que seja um dos candidatos aos Óscares. Premiado ou não é um dos filmes do ano. Arrebatador
A perfeição não se cinge ao apuro técnico, não dispensa a
emoção. Perfeita é, como disse um escritor, uma noite de Verão, não apenas porque
desenhe uma atmosfera de quietude exemplar, mas sobretudo porque a acalmia que
encerra inspira a sensualidade. Cisne Negro é uma aventura maravilhosa, bela e
terrífica ao longo das veredas, sinuosas e labirínticas, da perfeição e da paixão.
Uma obra magistral, que associa a música e o ballet ao sofrimento e ao terror, o
fulgor do palco aos dramas de bastidores, a frieza profissional ao erotismo. É
difícil, e mesmo injusto, compartimentá-lo num género. Trata-se seguramente de um
dos filmes do ano e só não apostamos abertamente nele no que respeita à sua consagração
pela Academia de Hollywood por ainda não termos visto a maior parte das obras em
competição. O Discurso do Rei, de Tom Hooper,
Indomável, dos irmãos Coen, (os dois filmes sobre os quais recaem a
maioria das apostas), Cisne Negro, Último Round, A Origem, Os Miúdos Estão Bem,
127 Horas, A Rede Social, Toy Story 3 e Despojos de Inverno são os dez
candidatos à estatueta de Melhor Filme de 2010, segundo os membros da Academia
de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. No momento em que escrevemos
esta crónica ainda não conhecemos o resultado, o qual será anunciado dia 10,
quarta-feira.
Darren Aronofsky, o realizador de Wrestling (é dele também a autoria de A Vida não é um Sonho e O Último Capítulo), volta ao mundo do espectáculo, aos seus holofotes e bastidores. Leroy (Vincent Cassel), o director artístico da companhia de Ballet de Nova Iorque, resume, logo após os estonteantes passes iniciais de ballet, que se encarregam de transmitir ao espectador, a claustrofobia disciplinada que sufoca a protagonista, o resumo da estória. Uma rapariga fora aprisionada no corpo de um cisne branco e só o amor a poderia libertar. Mas quando surge finalmente o príncipe salvador, intromete-se um cisne negro que, recorrendo à sensualidade, a afasta do amado e lhe desfaz o sonho. O cisne branco suicida-se então. Só assim consegue libertar-se.
Nina (Natalie Portman), uma bailarina da companhia de ballet, luta obsessivamente pela perfeição técnica e pelo papel principal no bailado. A sua vida circunscreve-se aos ensaios e à casa que compartilha com uma mãe possessiva e castradora, Erica (Barbara Hershey, outra notável interpretação), que ora lhe apazigua os desânimos ora a coloca sob uma insuportável pressão. Erica vive atormentada por ter fracassado na sua carreira e projecta na filha a sua frustração. No fundo, tenta, através dela, redimir-se do facto de não ter conseguido singrar como bailarina.
Nina, na sua busca obsessiva pela perfeição técnica, recalca as emoções e a sexualidade. O seu director artístico considera imaculado o seu trabalho enquanto cisne branco mas coloca reticências quanto à sua capacidade para encarnar o cisne negro - falta-lhe, espontaneidade, entrega, sensualidade. Nina esforça-se mas não consegue soltar-se. Ele espicaça-a, excita-a. Só que a situação piora quando entra em cena uma outra bailarina, Lily (Mila Kunis). Lily é o oposto de Nina: fuma, bebe, droga-se, irradia uma descontracção e uma sensualidade que suprem, no papel de cisne negro, a sua inferioridade técnica face a Nina.
O filme vive, a partir daí, da paranoia de Nina em perder o papel, o que a conduz quase à demência. Estabelece, inclusive, uma relação ambígua e intensa com Lily, tão intensa que não dispensa um belíssimo devaneio homosexual. A bailarina principal embrenha-se numa metamorfose que lhe toma a mente e o corpo - vive obcecada com uma irritação que lhe mancha a pele nas costas, parte as unhas, os dedos colam-se. Deixa-se enlear num delírio aterrorizante, ao perder a inocência perde também a noção da realidade.
Natalie Portman (tal como Darren Aronofsky) está nomeada para um Óscar, e não admira que o venha a receber: tem de facto uma interpretação notável. As interpretações são todas excepcionais. A da mãe, Erica (Barbara Hershey), também merece, pela entrega total ao personagem que representa, uma referência especial e Mila Kunis ganhou, como seu desempenho neste filme, uma outra dimensão como actriz.
A fotografia de Matthew Libatique, alterna, do princípio ao fim, o claro e o escuro, a claridade e a sombra, o branco e o preto com um rigor e um impacto visual digno de elogio. A direcção artística de David Stein é exemplar, conseguindo que a narrativa flua entre as diferentes atmosferas, apresentando pormenores fascinantes. A banda sonora de Clint Mansell, baseada, naturalmente, na obra-prima de Tchaikovsky, consegue intercalar, com uma rara mestria, o clássico e o pop, admitindo, inclusive, a "intromissão", numa das cenas mais controversa do filme, da sonoridade dos The Chemical Brothers. Todo o resto está a um excelente nível: guarda-roupa, coreografia, edição sonora. E uma palavra especial para o trabalho deslumbrante da Companhia de Ballet de Nova Iorque. Aquele epílogo é arrebatador. Bravo!