
Chappie ou até onde vai a consciência
(Mar 2015, publicado no semanário O País)
O realizador sul-africano Neill Blomkamp regressa à Joanesburgo de 'Distrito 9' para nos contar a estória de 'Chappie', um robot-criança, dotado de inteligência artificial, que questiona, sem moralismos, os limites da nossa consciência
Em Joanesburgo, África do Sul, num futuro próximo, vigora uma sociedade opressora, em que as forças policiais passam a contar com aliados de peso na sua indiscriminada luta contra a criminalidade e a marginalidade: robots praticamente imunes às balas dos antagonistas reduzem drasticamente o crime, poupando baixas entre os agentes da ordem.
A fórmula resulta e a empresa fabricante dos robots, dirigida por uma gestora implacável, obtém uma excelente rentabilidade mas um dos seus cientistas mais criativos quer ir além da satisfação gerada pela cotação bolsista e criar um robot com consciência, que não se limite a obedecer ao comando humano. O facto de o projecto não ser aprovado não leva o cientista, Deon Wilson (Dev Patel) a desistir da sua ideia.
Acontece que, já na posse de um novo 'firmware' que dará consciências às máquinas, é raptado por um pequeno grupo de bandidos que está farto de ver os seus golpes frustrados pela eficácia dos 'robots' e tem de arranjar forma de pagar uma soma avultada a um supercriminoso para sobreviver na rua. É assim que 'Chappie', o robot inteligente, dotado de sentimentos, capaz de aprender e improvisar, nasce entre criminosos. E passa inclusive a ser considerado uma ameaça pelas forças policiais, minadas pela corrupção e pela intriga.
'Chappie' é uma criança que aprende, rapidamente, o bem e o mal para lá do bem e do mal. A consciência que vai formando através da sua turbulenta aprendizagem segue uma lógica impecável, funcionando como o olho crítico do comportamento humano. Ainda por cima, está condenado a uma vida curta, dado que o cientista que o criou, uma vez que o projecto fora reprovado oficialmente, vê-se forçado a deitar mão de um robot alvejado para servir de suporte à consciência de 'Chappie'. Que trocas terá este de fazer para conseguir um 'corpo' novo?
O realizador sul-africano Neill Blomkamp regressa à Joanesburgo de 'Distrito 9', que desta vez figura sempre como pano de fundo, relativamente enevoado e recortado, da acção, que se desenvolve trepidante, ao ritmo de 'thriller' do princípio ao fim do filme. O tema é excelente e Blomkamp, que ganhou um lugar na grande indústria do cinema ('Chappie' é da Sony Pictures), faz de 'Chappie' uma sarcástica indagação do comportamento humano, da consciência ou inconsciência que dele temos, apostando claramente no lado sentimental do argumento (um bébé metido numa máquina, que vai absorvendo a seu modo, a estranha realidade que o rodeia), deixando para segundo plano uma reflexão mais aprofundada, mais 'cerebral' sobre a inteligência artificial, sobre a possibilidade da consciência poder existir para lá dos limites que conhecemos.
Só que, a brincar a brincar, Blomkamp - que deslumbrou com 'Distrito 9' (2009) ou 'Elysium' (2013) - coloca os problemas, continuando a apresentar um cinema muito original e sedutor, cheio de humor sarcástico e mordaz e uma aguda percepção das tensões sociais.
O grande desempenho de 'Chappie' cabe ao actor Sharlto Copley, que dá vida, consciência e sentimentos ao robot dotado de inteligência. À semelhança do que já sucedera com Jodie Foster em 'Elysium', a presença de Sigourney Weaver, no papel de implacável empresária fixada nas encomendas dos seus robots-polícia feitas pelas forças de segurança, é um tanto desperdiçada. Dev Patel tem uma interpretação segura na figura do cientista que acredita na inteligência artificial e o relevo dado ao grupo de rap sul-africano 'Die Antwoord' é uma das originalidades do filme, assumindo Ninje e Yo-Landi Visser papéis de primeiro plano. Outro grande realce vai para a banda sonora de Hans Zimmer, cuja qualidade se faz sentir nos melhores momentos do filme.
'Chappie' é um bom filme que mostra como um forte carimbo de autor, venha de que geografia vier, se consegue impor na milionária indústria cinematográfica.